Cartel, direcionamento, propina… Delações mostram como Odebrecht e políticos ‘driblaram’ a Lei de Licitações

Notícia Geral

DO G1

Criada em 1993 para evitar irregularidades em contratos entre empresas privadas e governos, a Lei de Licitações foi colocada em xeque pelas delações de ex-executivos da Odebrecht na Operação Lava Jato. Os relatos nas 270 horas de depoimentos mostram que tanto os agentes públicos quanto os privados encontraram formas de “driblar” a lei e obter vantagens em contratos com o governo, gerando prejuízo à população.

A Lei de Licitações foi criada para responder à pressão da sociedade por leis mais rígidas de controle dos gestores públicos, afirmaram especialistas consultados pelo G1. O presidente Itamar Franco queria mostrar que o novo regime democrático tinha contratos transparentes, ao contrário dos fechados durante a ditadura.

Filho do fundador da empreiteira, Emilio Odebrecht confirmou, em um de seus depoimentos, que esquemas de corrupção envolvendo o poder público já eram praticados há décadas. Pedro Novis, outro delator, afirmou que houve pagamento de propina aos ex-governadores Paulo Maluf e Orestes Quércia em contratos de obras feitas entre 1980 e 1982, quando era governador de São Paulo.

Mesmo com a edição da Lei de Licitações, os crimes dos quais Maluf seria suspeito nos anos 80 continuam sendo os mais comuns entre os esquemas de corrupção em licitações. O G1 conversou com especialistas em direito administrativo e selecionou exemplos de grandes licitações vencidas pela Odebrecht em dez estados brasileiros para mostrar de que formas a Lei de Licitações, o Código Penal e a Lei da Concorrência foram desvirtuados.

Segundo o advogado Carlos Ari Sundfeld, professor de direito público da FGV Direito-SP, um processo de licitação oferece três momentos diferentes em que pode ocorrer corrupção: com a formação de cartel entre as empresas concorrentes, com o direcionamento da licitação e, principalmente, durante a execução da obra. Ele afirma, porém, que a maior parte das irregularidades apontadas na Lava Jato deverá ser enquadrada nos artigos do Código Penal sobre corrupção ativa, corrupção passiva e chantagem, já que elas são mais fáceis de serem comprovadas.

Veja, a seguir, oito estratégias da Odebrecht que, segundo as delações, foram usadas para driblar a Lei de Licitações, exemplificadas por obras públicas em dez estados envolvendo a empreiteira. A resposta de cada político, autoridade ou empresa citada nas denúncias está no fim da reportagem.

1 – Cartel

Os advogados explicam que um cartel existe quando as empresas interessadas em contratos com o poder público negociam acordos entre si para decidir entre elas o resultado de uma licitação. Ao combinar sua estratégia, elas evitam uma concorrência de verdade, que poderia levá-las, por exemplo, a fechar um contrato a preços menores.

Essa combinação é crime segundo a Lei de Licitações. A pena, segundo o artigo 90, é de dois a quatro anos de prisão, além de multa para quem “frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório”.

Além disso, a Lei da Concorrência diz que é “infração de ordem econômica” uma empresa “acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente (…) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública”. O agente público, se tiver conhecimento desse acordo e não fizer nada para impedi-lo, também pode responder por isso.

As delações indicam que a Odebrecht e diversas outras empreiteiras simplesmente ignoraram essa determinação legal e realizaram acordos desse tipo em licitações realizadas em várias partes do país, como no Distrito Federal e em Pernambuco. Veja os exemplos:

Centro Administrativo do Distrito Federal: Três delatores afirmaram que, entre 2007 e 2014, houve “acordo de mercado” [expressão usada como sinônimo de cartel] entre empresas na fase de licitação da obra do Centro Administrativo do DF. João Antônio Pacífico, um dos delatores, afirmou que a Odebrecht se uniu à empresa Via Engenharia, indicada pelo grupo político do ex-governador José Roberto Arruda (PR), no consórcio Centrad, que venceu a concorrência e ganhou o contrato.

Para vencer a licitação, Via e Odebrecht ainda teriam fechado um “acordo de mercado” com o consórcio concorrente, que reunia as empresas Delta e Manchester. As construtoras desistiram da licitação principal, sob a promessa de que seriam “subcontratadas” para atuar na manutenção dos prédios, segundo Pacífico.

 

 

A licitação do Centro Administrativo do governo do Distrito Federal, em Taguatinga, envolveu fraudes, segundo delatores da Odebrecht (Foto: Isabella Calzolari/G1)
A licitação do Centro Administrativo do governo do Distrito Federal, em Taguatinga, envolveu fraudes, segundo delatores da Odebrecht (Foto: Isabella Calzolari/G1)


Porto de Suape, em Pernambuco: Uma das muitas obras do Porto de Suape foi a do Cais 5, de responsabilidade da Companhia Pernambucana de Gás (Copergás). O delator da Odebrecht Carlos Angeiras afirmou que, em 2008, por exigência de Aldo Guedes, presidente da Copergás, a Odebrecht se juntou em um consórcio com a OAS e ambas fizeram um “acordo de mercado” com os dois outros consórcios interessados na licitação (Serveng/Enterpa e Andrade Gutierrez/Somar). O valor de referência da Suape para a licitação desta obra era de R$ 109,5 milhões.

Para vencer a licitação, o consórcio da Odebrecht ofereceu a proposta com o preço mais baixo, de R$ 107,9 milhões, enquanto os dois outros consórcios fizeram propostas de R$ 108,6 milhões e R$ 109 milhões, respectivamente. Em troca, Aldo Guedes teria recebido propina em nome do então governado Eduardo Campos, que morreu em 2014.

 

 

Delatores relataram irregularidades na construção do Cais 5 e do Píer Petroleiro no Porto de Suape (Foto: Reprodução/TV Globo)
Delatores relataram irregularidades na construção do Cais 5 e do Píer Petroleiro no Porto de Suape (Foto: Reprodução/TV Globo)


2 – Direcionamento

Ocorre direcionamento da licitação quando o agente público atua para que uma empresa específica saia vencedora. Isso fere o objetivo da Lei de Licitações de gerar concorrência verdadeira para um contrato. O direcionamento é outro momento apontado pelos especialistas como irregular porque impede o caráter competitivo da licitação.

Canal do Sertão Alagoano: Foi o que aconteceu nas obras do Canal do Sertão, em Alagoas. Segundo os delatores, os políticos atuaram no direcionamento da licitação dos lotes 3 e 4 da obra para a OAS e a Odebrecht, respectivamente. Em troca, “diversos agentes públicos” receberam propina no valor equivalente a 2,25% do total do contrato. Segundo João Pacífico, a equipe do então governador de Alagoas, Teotônio Vilela Filho (PSDB), atuou diretamente no esquema.

“Soubemos da obra do Canal do Sertão pela imprensa e quando chegamos já havia outras empresas fazendo estudos no local. Todas apresentaram propostas para obra, mas era o governo do Estado que coordenava a divisão. Então ele dizia olha, esse lote aqui é da OAS, esse lote aqui vai ser da Odebrecht. Aquele lote, você não atrapalhe não, porque o seu vai ser esse aqui. Eles faziam essa coordenação”, explicou Pacífico.

 

 

Trecho 3 do Canal do Sertão, que foi inaugurado no município de Inhapi, em Alagoas, em 2015  (Foto: Waldson Costa/G1)
Trecho 3 do Canal do Sertão, que foi inaugurado no município de Inhapi, em Alagoas, em 2015 (Foto: Waldson Costa/G1)


Cidade Administrativa de Minas Gerais: Outro exemplo de direcionamento que teria sido acertado diretamente com políticos foi o da obra de construção da Cidade Administrativa de Minas Gerais. De acordo com um dos inquéritos na lista de Fachin, quando Aécio Neves (PSDB-MG) tomou posse em seu segundo mandato como governador de Minas, ele teria organizado o esquema para fraudar a licitação: “A construção da cidade administrativa ocorreria em três lotes: o primeiro referente ao palácio de governo e a um anexo, o segundo referente a uma secretaria e o terceiro referente a uma outra secretaria. A Odebrecht seria a líder do lote 2 e ficaria responsável para construir a secretaria em consórcio com a Queiroz Galvão e a OAS, por um valor final de aproximadamente 360 milhões de reais”, diz o inquérito.

 

 

Cidade Administrativa é sede do governo de Minas Gerais  (Foto: Carlos Alberto/Imprensa MG)
Cidade Administrativa é sede do governo de Minas Gerais (Foto: Carlos Alberto/Imprensa MG)


Ponte sobre o Rio Negro, no Amazonas: A Região Norte também teve uma obra citada nas delações da Odebrecht relacionada ao direcionamento de licitação. Trata-se da concorrência da obra de construção de uma ponte sobre o Rio Negro, no Amazonas. O contrato foi assinado com o consórcio vencedor em 2007.

O delator Arnaldo Cumplido de Souza e Silva afirmou que assumiu a diretoria de projetos de infraestrutura da empreiteira em 2009 e, então, foi informado de um acordo para fazer pagamentos indevidos ao então governador Eduardo Braga (PMDB), porque ele teria favorecido o consórcio entre a Camargo Corrêa e Construbase nesta licitação. Depois que Braga deixou o governo para concorrer ao Senado, seu vice-governador, Omar Aziz, assumiu o cargo e teria “herdado” o recebimento dos pagamentos indevidos.

 

 

A ponte sobre o Rio Negro liga Manaus a Iranduba, no Amazonas (Foto: Adneison Severiano G1/AM)
A ponte sobre o Rio Negro liga Manaus a Iranduba, no Amazonas (Foto: Adneison Severiano G1/AM)


3 – Interferência no edital

A Odebrecht usava sua rede de influência para alterar os editais das licitações para adotar critérios que a favorecessem na disputa pela obra, segundo os delatores.

Trecho Sul do Rodoanel, em São Paulo: Roberto Cumplido, delator da Odebrecht, afirma que a licitação dos lotes do Rodoanel Sul envolveu irregularidades. Além da cartelização das empresas, que definiram entre si quem venceria a concorrência de cada lote da obra, Cumplido afirma que a Odebrecht se reuniu com a Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S/A) para fazer “inúmeros pleitos relacionados aos editais de licitação dos lotes da obra do Rodoanel, que foram atendidos pela concessionária”.

Guilherme Jardim Jurksaitis, professor de direito administrativo na pós-graduação da FGV Direito-SP, explica que essa prática descumpre a regra da lei que prevê que as licitações sejam sigilosas antes da publicação do edital. Segundo o professor, “é comum o mercado procurar influenciar a administração na formulação de seus editais, especialmente quando envolvem grandes obras”.

Um dos motivos é o fato de que a licitação é feita apenas com o projeto básico da obra, de responsabilidade poder público, que “não costuma dispor das condições técnicas suficiente à elaboração de bons editais e projetos para grandes obras”. Porém, ele afirma que, ao buscar socorro na experiência do mercado privado, os agentes públicos não podem acabar beneficiando uma empresa com informações privilegiadas durante a licitação.

 

 

Ponte sobre represa no trecho sul do Rodoanel (Foto: Ardilhes Moreira/G1)
Ponte sobre represa no trecho sul do Rodoanel (Foto: Ardilhes Moreira/G1)


4 – Aditivos contratuais

Especialistas apontam que há inúmeras oportunidades para que agentes públicos e privados se aproveitem de brechas legais para praticar esquemas de corrupção após o processo de contratação, mesmo que a licitação tenha ocorrido dentro das regras. Uma das mais comuns é a adoção de aditivos contratuais para aumentar o valor do contrato, que podem ser negociados entre a empresa e o governo que contratou a obra.

“A lei é muito rigorosa para celebrar contratos, mas é muito permissiva para fazer ajustamentos”, diz Jardim, professor da FGV Direito-SP. Ele cita como exemplo a falta de necessidade de transparência pública na elaboração e celebração de aditivos e a falta de exigência de abrir uma concorrência para que outras empresas possam fazer propostas para executar aquele trecho não previsto no contrato original. “Formalmente a lei é cumprida. O problema é que a corrupção não está no jogo formal, está por trás disso, e a lei não se preocupou em fazer dispositivos mais sofisticados.”

Os especialistas explicam que nem sempre o dinheiro da propina está vinculado diretamente ao dinheiro a ser recebido com um ajuste do contrato de licitação. “Durante a execução do contrato, a administração pode criar um milhão de problemas”, explica Sundfeld. “Por exemplo, a empresa prestou o serviço e o gestor não paga, fala que não tem dinheiro e paga quando puder. Ou ela está disposta a receber propina e criar facilidades para a empresa. Nesse caso, não é que a empresa esteja violando a lei [de licitações]. Ela viola outra lei, a lei penal, que é pagar propina, mas o contrato em si não é inválido. Só que a empresa diminuiu seu ganho pagando propina, senão seria prejudicada por alguém.”

Perimetral de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul: Um exemplo de como políticos teriam conseguido “vantagens indevidas” usando a flexibilidade da legislação é a obra da Perimetral de Porto Alegre, um contrato de mais de R$ 600 milhões feito com dinheiro do governo federal, envolvendo a Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb) e o consórcio liderado pela Odebrecht. Em depoimento, Valter Luis Arruda Lana, delator da Odebrecht, contou que a obra foi licitada ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, mas entre 2003 e 2007 ficou parada no Tribunal de Contas da União (TCU). O projeto só começou a sair do papel em 2008, mas cheio de “amarras”, para evitar, principalmente, a possibilidade de celebração de aditivos contratuais superfaturados.

Segundo ele, em um período “curto” de tempo após o início das obras, a empreiteira teve que negociar o pagamento de propina a quatro pessoas diferentes, que “se diziam credoras” do projeto: Marco Maia (PT), ex-presidente da Trensurb, Marco Arildo (PT), presidente da Trensurb em 2008, Humberto Kasper (PT), diretor da Trensurb, e Eliseu Padilha (PMDB), ministro de FHC na época da licitação. Lana disse que ouviu deles a justificativa de que eles tiveram a chance de criar dificuldades ao processo de licitação, mas não o fizeram na época e, por isso, queriam receber uma contrapartida da empresa. Ele também afirmou que Paulo Bernardo (PT), ministro em 2008, o procurou para avisar que a obra tinha sido inserida no PAC da Mobilidade, o que garantia que ela teria prioridades na execução e pagamentos em relação a outras obras.

O delator contou que foi favorável ao repasse de dinheiro em todos os casos para “não correr riscos”. Os especialistas explicam que o raciocínio tem lógica, já que o andamento do contrato envolve a expedição de licenças ambientais, a liberação de financiamentos e outros atos públicos que poderiam ficar prejudicados, caso um político contrariado decida, por ação ou omissão, interferir no processo.

No total, as cinco pessoas teriam recebido o equivalente a 2,25% do valor total do contrato, dinheiro que teria sido pago após a Odebrecht conseguir um único aditivo contratual, referente a gastos extras para a obra, depois que um córrego não incluído no projeto básico foi encontrado no trajeto da avenida.

 

 

Trem da Trensurb na estação Novo Hamburgo, construída por um consórcio liderado com a Odebrecht; a obra foi avaliada em mais de R$ 600 milhões, e, segundo delatores, mais de 2% desse valor foi repassado em propinas a cinco políticos diferentes (Foto: Divulgação/Trensurb/Emilene Lopes)
Trem da Trensurb na estação Novo Hamburgo, construída por um consórcio liderado com a Odebrecht; a obra foi avaliada em mais de R$ 600 milhões, e, segundo delatores, mais de 2% desse valor foi repassado em propinas a cinco políticos diferentes (Foto: Divulgação/Trensurb/Emilene Lopes)


5 – Pagamento dentro de outro contrato

Outra forma de escapar do controle dos tribunais de contas, cada vez mais eficientes em detectar “jogo de planilha” e pegar irregularidades em aditivos contratuais, as empresas e o poder público também foram atrás de outras formas de driblar esse cerco e executar repasses indevidos. Na arena Fonte Nova, na Bahia, a Odebrecht recebeu parte do pagamento dentro de outro contrato.

Arena Fonte Nova, na Bahia: Com os aditivos contratuais na mira dos tribunais de conta, principalmente em obras importantes para a Copa do Mundo, o então governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), teria pedido, à Odebrecht, uma forma “heterodoxa” de resolver uma dívida com gastos extras que o consórcio entre a empreiteira e a OAS tiveram para acelerar a obra e terminá-la em 2013, a tempo da Copa das Confederações. Esse é o relato do delator André Vital Pessoa de Melo, que afirmou que a solução encontrada foi incluir essa dívida no pagamento de outra dívida, da década de 1990, entre a Companhia de Engenharia Ambiental e Recursos Hídricos da Bahia (Cerb) e a Odebrecht.

A dívida era de R$ 390 milhões, mas a empreiteira aceitou reduzi-la para R$ 290 milhões, e afirmou que só daria apoio a campanhas eleitorais do partido no estado se recebesse a primeira parcela ainda em 2014. Pelo acordo, a Odebrecht repassaria ao PT R$ 30 milhões, mas o delator Cláudio Melo Filho afirma que só um terço do dinheiro foi repassado.

 

 

Arena Fonte Nova: governo da Bahia não quis fazer aditivo contratual e preferiu pagar dívida regular de forma 'heterodoxa', disse delator (Foto: Felipe Oliveira / Divulgação / EC Bahia)
Arena Fonte Nova: governo da Bahia não quis fazer aditivo contratual e preferiu pagar dívida regular de forma ‘heterodoxa’, disse delator (Foto: Felipe Oliveira / Divulgação / EC Bahia)


6 – Ataques a concorrentes

Outra boa intenção da Lei de Licitações que acabou virando estratégia para uma série de irregularidades foi a facilidade oferecida aos concorrentes para questionar o resultado de uma licitação. Segundo Sundfeld, “se alguém entrar na licitação de fora do esquema, vai provavelmente ser soterrado por um ataque do cartel. Basta ir com uma alegação qualquer no Tribunal de Contas ou na Justiça, e eles dão uma liminar e param a licitação”.

Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia: Foi o caso de uma das obras do Projeto Madeira, a construção da Usina Hidrelétrica de Jirau, vencida pela empresa Tractebel-Suez. A Odebrecht, segundo os delatores Emílio Odebrecht e Henrique Serrano Valladares, estava convicta de que a Suez teria vencido a licitação de forma irregular e, para tentar barrar a contratação, teria apelado, em vão, ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e depois teria pago R$ 5,5 milhões em espécie ao senador Edison Lobão (PMDB-MA), para que ele interferisse junto ao governo Dilma.

Outra estratégia da Odebrecht foi contar com o apoio do então deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para atacar representantes do governo durante audiência na Câmara sobre as obras da usina. Segundo Valladares, Cunha organizou um café da manhã com ele e “pelo menos seis deputados”, para que o executivo “treinasse” os deputados a fazerem perguntas embaraçosas ao governo. “A reunião do café era para que eu capacitasse os deputados a fazerem perguntas durante essa reunião da comissão. Perguntas que eu sabia que eles não tinham respostas, perguntas embaraçosas, que eu faria se estivesse lá na condição de fazer. Então, eu fiz uma explanação daquilo que é o [rio] Madeira. Eles não sabiam de nada disso, de Furnas, Odebrecht, investimentos de R$ 100 milhões, essa ladainha que os senhores não aguentam mais ouvir”, acrescentou o delator no depoimento.

 

 

Mesmo após a tentativa da Odebrecht de impedir o contrato da Suez, a Usina Hidrelétrica de Jirau acabou inaugurada em dezembro de 2016 (Foto: Giseli Buscariollo/G1)
Mesmo após a tentativa da Odebrecht de impedir o contrato da Suez, a Usina Hidrelétrica de Jirau acabou inaugurada em dezembro de 2016 (Foto: Giseli Buscariollo/G1)


7 – Corrupção dos fiscais

Tanto a Constituição Federal quanto a Lei de Licitações preveem que os contratos sejam fiscalizados pelos tribunais de contas e pelos vereadores e deputados estaduais e federais, que são ligados ao Poder Legislativo, além de órgãos como a Controladoria-Geral da União e a própria Justiça. As delações da Odebrecht, porém, mostram que os esquemas de corrupção envolveram inclusive quem deveria controlar o processo para coibir irregularidades.

Obra de Angra 3, no Rio de Janeiro: Henrique Pessoa, ex-executivo da Odebrecht, afirmou em depoimento ao Ministério Público Federal que a empreiteira contratou uma sobrinha do presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Raimundo Carreiro, como contrapartida à resolução de um processo judicial sobre as obras da usina de Angra 3. De acordo com o delator, a licitação que foi vencida pelo consórcio do qual a Odebrecht participava em Angra 3 foi judicializada e levada ao TCU pelo consórcio perdedor.

“[Em] uma das reuniões na UTC [outra empresa do consórcio da Odebrecht], Antonio Carlos Miranda [diretor da UTC] perguntou a cada um dos presentes lá, estávamos todos, quem é que poderia contratar essa menina, a Fernanda, porque era uma solicitação”, relatou ele. “Em um primeiro momento todo mundo não tinha onde colocar, coisa e tal. Mas ele insistiu e terminamos, nós, porque tínhamos uma obra próxima da casa dela – se não me engano, ela morava no Campo Grande, no Rio de Janeiro e nós tínhamos uma obra próxima – e ela acabou sendo fichada por nós, a Odebrecht”, explicou.

 

 

Obras da Usina de Angra 3, em foto de outubro de 2013 (Foto: Divulgação/Eletronuclear)
Obras da Usina de Angra 3, em foto de outubro de 2013 (Foto: Divulgação/Eletronuclear)


Propostas para mudar a lei

Após quase 25 anos em vigor, não faltam críticas e propostas para melhorar a Lei de Licitações. Até agora, ela já passou por diversas modificações, principalmente na lista de hipóteses em que o poder público pode dispensar a licitação – essa lista praticamente dobrou desde que a lei saiu do papel. “As dispensas mostram o fracasso da lei”, afirma Guilherme Jardim. “Ela prevê hipóteses de contratação direta. No início, eram 13 casos de contratação, hoje são mais de 30. Isso foi aumentando ao longo do tempo.”

A experiência do Regime Diferenciado de Contratações (RDC), exceção feita pelo governo federal para obras ligadas à Copa do Mundo de 2014 e à Olimpíada do Rio de 2016, dividiu opiniões e foi inclusive alvo de ações diretas de inconstitucionalidade. Jardim explica que ela não é capaz de, sozinha, erradicar os esquemas de corrupção, mas trouxe como novidade o dispositivo da “contratação integrada”, que permite que uma única licitação seja feita para o projeto básico da obra, o projeto executivo e a própria execução.

Carlos Ari Sundfeld lembra que a própria Lei de Licitações foi criada sob forte influência das empreiteiras, que tinham a intenção de controlar a competição. “É claro que, quando você limita a competição, você aumenta a possibilidade de cartel”, explicou o professor de direito público. “Reformas anteriores andaram criando furos nesse sistema, como a lei do pregão. Não serve para obras, é mais para compras, mas tornou a competição mais radical.” Sundfeld diz que, ao dar espaço para empresas de fora, elas podem acabar “desarranjando um pouco esses espaços muito contaminados” dos esquemas de poder ligados a partidos. “Não acabam com isso, mas fazem uma bagunça. Ter leis que estimulam mais a competição é bom.”

Atualmente, o projeto de lei mais avançado para fazer novas alterações na Lei de Licitações foi aprovado no Senado em janeiro. Entre as mudanças está dobrar a pena de prisão e permitir mais hipósteses para a “contratação integrada”. Porém, de acordo com os especialistas ouvidos pelo G1, as melhorias que ele pode trazer não necessariamente estão ligadas ao combate à corrupção.

Entre as sugestões feitas estão modificar artigos que dão aos gestores públicos um poder “excessivo” sobre as empresas, como a possibilidade de atrasar o pagamento em até 90 dias sem justificativa, assegurar maior controle do orçamento para que uma obra não fique parada no meio do caminho por falta de verba e derrubar “barreiras burocráticas” que estimulam a prática de corrupção.

“Quanto mais barreiras burocráticas, mais oportunidade tem para pedir propina. Mas os órgãos de controle querem cada vez mais barreiras, inclusive criadas por eles mesmos, para aprovar aditivo, ou resultado de licitação… Mas e se a autoridade do tribunal de contas se corromper? Então é mais oportunidade para a corrupção”, diz Sundfeld.

O que dizem os citados

Veja o que disseram os políticos, autoridades e empresas sobre as delações citadas acima:

  • O assessor de Paulo Maluf, Adilson Laranjeira, disse que não vai comentar o caso. O PMDB de São Paulo, do ex-governador Orestes Quércia, morto em 2010, não respondeu. No caso de Maluf, porém, o caso foi arquivado, já que, mesmo que comprovados, os crimes já estariam prescritos por terem sido cometidos há mais de três décadas.
  • Procurado pelo G1, o ex-governador do DF, José Roberto Arruda, afirmou que não tinha interesse em comentar as citações de seu nome em petições da lista de Fachin. Em nota, a Via Engenharia disse que desconhece as negociações, e que a Odebrecht, como líder do contrato, era quem administrava as relações com o cliente.
  • A defesa de Aldo Guedes informou que, por enquanto, não vai se pronunciar sobre o caso. O Partido Socialista Brasileiro (PSB) disse que apoia a decisão do ministro Edson Faquin de quebrar o sigilo das delações dos executivos da Odebrecht e que vai atuar em todas as instâncias para que a honra do ex-governador Eduardo Campos não seja manchada.
  • Por meio de nota, Teotonio Vilela negou ter negociado ou autorizado favores.
  • Em nota, a assessoria de Aécio Neves afirmou que “é falsa e absurda a acusação de que Aécio teria participado de algum ato ilícito envolvendo a licitação ou as obras da Cidade Administrativa de Minas Gerais”.
  • O senador Eduardo Braga disse desconhecer o conteúdo das informações que levaram a PGR a pedir abertura de inquérito e afirmou que “a abertura de inquérito não significa que os investigados respondam por qualquer tipo crime”. Omar Aziz, também senador, disse que não irá se manifestar sobre o assunto.
  • Em nota, Marco Arildo Cunha disse que “não são verdadeiros os fatos relatados” pelos executivos da Odebrecht. O G1 não conseguiu contato com Humberto Kasper até a publicação desta reportagem. O deputado Marco Maia disse que a lista é uma grande mentira e que em nenhum momento fez algum contato ou pedido à Odebrecht. A defesa do ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, afirma que todo e qualquer conteúdo de investigações será debatido exclusivamente dentro dos autos. Paulo Bernardo nega ter feito pedido propina e informa que não teve qualquer conversa com executivos da Odebrecht para tratar da inclusão da obra no PAC.
  • Luiz Carlos Frayze David, ex-presidente do Metrô de São Paulo, Sérgio Brasil, ex-diretor do Metrô, e Luiz Carlos Ferreira ainda não tinham se pronunciado sobre as delações até a publicação desta reportagem.
  • Jaques Wagner afirmou, em nota, que “trata-se de uma delação repleta de inverdades”. “Estou absolutamente tranquilo porque não houve qualquer ato ilícito. Vou defender de forma intransigente o completo esclarecimento dos fatos porque a sociedade tem o direito de conhecer a verdade.”
  • O senador Edison Lobão negou as denúncias. A defesa dele informou que comprovará que os acusadores não têm prova ou indício do que dizem. Em nota, a defesa de Dilma Rousseff disse que ela “vem sendo vítima de vazamentos seletivos e direcionados há meses, sem que sequer saiba do que está sendo acusada”. Em entrevista a uma rádio, Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que desafia “qualquer empresário brasileiro, qualquer empresário, a dizer que um dia o Lula pediu R$ 10 pra ele ou alguém”. “Se alguém pediu em meu nome, a pessoa que pediu tem que ser presa, porque eu nunca autorizei ninguém a pedir dinheiro em meu nome”, disse ele. A defesa de Eduardo Cunha afirma que os delatores apontam atos ilícitos sem qualquer prova do ocorrido, em uma busca inexplicável de envolvê-lo nos crimes da Lava Jato.
  • Em nota, o ministro Raimundo Carreiro afirmou que, “além de prestar todos os esclarecimentos, desde 2015 ofereceu à Polícia Federal, de forma antecipada, a quebra de seus sigilos fiscal, bancário e telemático, em um termo devidamente formalizado, no intuito de colaborar para o esclarecimento da verdade e comprovar a total falta de fundamento de denúncias que envolvem seu nome”.